domingo, 3 de abril de 2011

.O que é Deus?: Como pensar o divino Resumo de Livro

INTA – Instituto Superior de Teologia Aplicada
FUNDECT – Fundação Universitária e Desenvolvimento Científico












INTRODUÇÃO A TEOLOGIA

Prof. Arnaldo Sá

Teologia

M ª Josiane Lopes






SOBRAL-CE
2009
O QUE É DEUS?
Como pensar o divino



INTRODUÇÃO

Como pensar acerca de Deus? Deus não é algo em que se possa pensar facilmente, e muito menos ainda escrever. Se estamos interessados em discorrer a respeito de Deus, é porque provavelmente temos alguma “sensação”, alguma “premonição”, um “senso” ou “intuição” do que é referido como Deus. Sentimentos, premonições e sensações ainda não são, todavia, o que entendo por pensamento.

Há “pensadores” religiosos para os quais Deus só pode ser abordado como sujeito, e não enquanto objeto do pensamento humano. Todo encontro possível com o divino, afirmam eles, só pode ocorrer na adoração e na oração, mas não em tentativas teóricas de descrever como Deus pode ser. E há fortes elementos em apoio a essa “teologia negativa”, seja nas tradições religiosas orientais, seja nas ocidentais. Tais tradições ensinam-nos que podemos dizer o que Deus não é, mas não o que Deus é.


A idéia de Deus não é uma invenção da teoria, e sim o produto de uma modalidade única de experiência. A linguagem original em que se manifestou o conceito de Deus é a do símbolo e do mito, tendo-se implementado em rituais e outros tipos de atividade humana bem antes de tornar-se tema de discussão filosófica ou teológica. Qualquer reflexão que façamos em nosso modo teórico deve referir-se continuamente a essas expressões “ingênuas”. É possível que nessas fontes simbólicas exista uma plenitude sempre renovável de sentido, capaz de continuar a nutrir nosso pensamento em todas as épocas, não importa quão cientificamente inclinados possamos tornar-nos.


Quando ouvem a palavra “Deus”, no entanto, as pessoas costumam associá-la a uma imagem semelhante à humana, dotada de “personalidade” cósmica. Um dos problemas mais difíceis na discussão filosófica e teológica consiste em saber se é adequado pensar Deus em termos pessoais e, em caso positivo, de acordo com que gênero específico. Albert Einstein rejeitava a idéia de um Deus pessoal por considerá-la uma superstição primitiva. Muito embora se considerasse "religioso", no sentido de adotar uma atitude de submissão reverencial ao caráter misterioso do universo, o renomado físico não conseguia compatibilizar a "personalidade" de Deus com a concepção que tinha da ciência moderna.

Não tenho competência para tratar das complexidades envolvidas nessa questão. Procederei, no entanto, com base na pressuposição de que uma realidade transcendente que não seja minimamente dotada dos atributos constitutivos da dignidade da pessoa humana, ou seja, algo como inteligência, sentimento, liberdade, poder, iniciativa, criatividade etc. -, ainda que em grau elevado-, não poderia inspirar, adequadamente, confiança ou reverência nos seres humanos. Deus teria de ser "pessoal" para ser Deus.

Parece importante que contrabalancemos essa imagética antropomórfica com uma linguagem neutra se nosso tema diz respeito ao "quê" de Deus. “Quem é Deus? Talvez isso esteja além das possibilidades de nossa indagação. Mas o que é Deus?


Especialmente hoje, quando a questão da sexualidade de Deus tornou-se tão proeminente no debate teológico, é importante que não nos esqueçamos de que nossa busca de profundidade, de futuro, de liberdade, de beleza e de verdade é mais fundamental do que a preocupação especificamente teísta sobre se Deus deve ser compreendido como masculino ou feminino.




CAPÍTULO I

A PROFUNDIDADE

Ao relacionar-me com outra pessoa, seja quem for, mas, sobretudo se tratar de alguém que amo, pode observar o seguinte: mais cedo ou mais tarde, essa pessoa fará ou dirá alguma coisa que me surpreenderá. Poderá ser algo que me agrade ou que me desaponte. No entanto, se pretender manter meu relacionamento com o “outro”, terei de rever minhas impressões a seu respeito. Deverei passar a um nível mais profundo de entendimento do outro. E, tendo-me relacionado com a outra pessoa nesse nível, com o passar do tempo encontrarei cada vez mais ocasião para um maior aprofundamento. Evidentemente, posso recusar-me a olhar mais atentamente, e é provável que na maioria das vezes de fato me recuse. Mas não é preciso grande experiência em relação às outras pessoas para perceber que existe algo sob as aparências de minhas impressões a seu respeito. “Os outros não são o que parecem ser”. Naturalmente, isso é um truísmo tão óbvio que parece quase banal demais até mesmo sua simples menção. É possível, no entanto, que exista algo mais do que parece à primeira vista. Investiguemos mais a fundo.

Os outros não apenas não são o que aparentam ser, como tal observação se aplica a mim mesmo. Há sempre mais coisa a meu respeito do que o que se acha contido em minhas impressões acerca de mim mesmo. Minha auto-imagem não esgota aquilo que sou. Não preciso ser especialista em psicologia profunda para validar essa observação. Só preciso ter alguma experiência de vida para poder perceber essa verdade. Fazendo uma análise retrospectiva de alguns anos, ou até mesmo de alguns meses ou dias, lembro-me de que pensava saber quem eu era. Novas experiências, todavia, remodelaram minha vida. Novas questões, novos sentimentos e inclinações, novos dramas e fantasias, novas expec­tativas em relação à minha pessoa passaram a conformar meu perfil. Agora sei que não sou o que pensava ser. Nesse momento, devo admitir que não sou exatamente o que aparento ser a mim mesmo ou aos outros. Por que as coisas se passam dessa forma? Por que os outros não são o que parecem ser? Por que não sou transparente a mim mesmo? Eis uma questão embaraçosa, realmente tão desconcertante que na maioria das vezes prefiro descartá-la. Apego-me às impressões como se fossem verdades fundamentais. Recuso-me a ir mais a fundo. Por quê?

O mundo natural e o mundo social manifestam impressões superficiais de si mesmos que nos cabe questionar. Tampouco são o que aparentam ser. No tocante à natureza, a questão se resolve facilmente pelo recurso à ciência. Também a ciência, e não somente a religião, desenvolve-se com base na convicção de que as coisas não são o que pare­cem ser. Sob o mundo das impressões do senso comum, por exemplo, encon­tra-se um universo submicroscópico de ocorrências físicas "contra-intuitivas" que não conseguimos visualizar e nem mesmo imaginar.

Por que é de tal sorte que o que ontem parecia profundo hoje se revela trivial, ou o que inicialmente me causava impressão de profundidade agora me parece superficial? Com que espécie de universo estamos lidando, se não se esgota nas impressões que temos a seu respeito?


Por que razão, no que diz respeito aos outros, a mim mesmo, à natureza e à sociedade, as coisas nunca são exatamente o que parecem ser? Porque sob sua superfície encontra-se uma infinita e inexaurível dimensão de profundidade. Muitas pessoas talvez se contentem em chamá-la de dimensão do mistério.

A experiência da profundidade tem duas faces. “É abismo e sustentáculo a um só tempo. A dimensão da profundidade em que se assenta a superfície de nossa vida inicialmente se nos apresenta como abismo. Instintivamente recuamos à vista de um abismo, pelo que tem de insondável, de abissalidade, por ser um vazio aparentemente sem fundo. Precipitar-se em seu interior equivaleria à própria perdição. Essa é a face primeira com que a profundidade se apresenta a nós. É um nada indutor de angústia que parece ameaçar nosso próprio ser.

O abismo é apenas uma vertente da experiência de profundidade, e somos tentados a pensar, a exemplo de alguns filósofos importantes, como Nietzsche, Sartre e Camus, que se trata da única vertente.
A AUSÊNCIA DE DEUS

Deus não é um objeto entre outros em nossa experiência. Pelo contrário, Deus pode ser com­preendido como o horizonte último que possibilita, sobretudo a totalidade de nossa experiência. Conseqüentemente, talvez não seja apropriado falar de urna "experiência" de Deus, se entendermos "experiência" na acepção comum do termo. A presença de Deus é discreta. O divino não se imiscui no espectro de objetos ou eventos que compõem o conteúdo de nossa experiência comum. Deus pode ser "pensado" como a profundidade inesgotável e o fun­damento sobre o qual se erige a totalidade de nossas experiências.

A ausência e a inacessibilidade do divino em ralação ao campo dos objetos tangíveis e verificáveis do conhecimento não constituem razão para negar a realidade de Deus.

A RELIGIÃO

A sabedoria das grandes tradições ensina-nos que a experiência de pro­fundidade freqüentemente ocorre após ou em meio a situações de desespero, infortúnio, empobrecimento, perda, sofrimento e, sobretudo de ameaça de morte. Tillich sintetiza essa sabedoria ao dizer que “... não pode haver profundidade sem uma via de acesso à profundidade. A verdade sem uma via de acesso à verdade é morta...". Essa "via de acesso" envolve a experiência da dor e da perda, mas também do júbilo e do êxtase. É só porque intuímos de alguma forma que na profundidade se encontra a alegria, que nos sentimos alentados a nos arremessar ao abismo. Supomos que por baixo da superfície exista algo que não desaponta e que pode acarretar uma espécie de contentamento mais profundo e duradouro do que as formas costumeiras de consolação que buscamos. É esse sentimento que dá origem à religião. A religião é a busca apaixonada de profundidade e de um fundamento último e sólido que dê suporte à nossa existência.

Em termos mais simples, portanto, a religião pode ser compreendida como a busca de profundidade. Àqueles para quem a única função da religião é for­necer respostas, essa pode parecer uma forma insólita e até mesmo inaceitável de compreendê-la.


É um trágico erro da educação religiosa transmitir às pessoas a impressão de que a conversão a um conjunto específico de símbolos e de doutrinas constitui o fim da aventura da vida em direção ao desconhecido. Ao contrário, a “conversão" pode significar uma nova guinada e uma nova confiança na jornada sem fim em direção à profundidade de nossa vida. É o compromisso de empreender a busca com uma confiança irreversível.

Tillich tem profundas palavras de prudência para aqueles que tentam apropriar-se de Deus, concebido como a profundidade da existência:

“A condição do relacionamento do homem com Deus é, sobretudo não pos­suir, não buscar, não conhecer e não apreender. Uma religião em que isso é esquecido, independentemente de quão extática, ativa ou razoável seja, substitui Deus pela própria criação de uma imagem de Deus... Não é fácil suportar esse não possuir Deus, esse esperar por Deus... Pois como Deus pode ser possuído? Será Deus uma coisa que se possa apreender e conhecer em meio a outras coisas? Será Deus menos que uma pessoa humana? Sempre temos de esperar por um ser humano. Mesmo na mais íntima comunhão entre os seres humanos, existe esse aspecto de não possuir, de não conhecer e de esperar. Por conseguinte, como Deus é infinitamente oculto, livre e incomensurável, devemos esperá-lo da maneira mais absoluta e radical. Ele é Deus para nós na exata medida em que não o possuímos. A condição para que tenhamos Deus é não possuí-lo.”


Essa concepção da existência religiosa reconhece que "não pode haver profundidade sem uma via de acesso à profundidade". A realização de nossos mais profundos anseios não pode ocorrer em um ato instantâneo de consciência, embo­ra talvez uma decisão radical de viver irreversivelmente em espera confiante possa ser do tipo que se verifica em um único momento. A experiência de Deus como profundidade envolve nosso engajamento em um rumo, em uma caminhada, em uma peregrinação, com a plena consciência de que ao final do percurso poderemos ainda ter pela frente uma distância infinita. De todas as possíveis respostas para nossa vida, a espera radical é a mais difícil, a mais árdua, a menos gratificante.

Se Deus é a profundidade da existência, então a religião é a busca confiante dessa profundidade, tanto quanto a celebração daqueles acontecimentos, pessoas ou ocasiões por cujo intermédio a profundidade irrompe na superfície de nossa vida de maneira excepcional.





CAPÍTULO II


O FUTURO

O futuro evade-se de nossa compreensão. Apesar disso, não temos como deixar de experienciá-lo ou de sofrer sua influência. Não podemos negar que o futuro, mais do que a dimensão de profundidade, é parte de nossa experiência, ainda que não possamos esquadrinhá-lo. Somos constantemente "invadidos", "assoberbados" pelo futuro, "transportados" para ele, ou simplesmente tentamos evitá-lo. Sem dúvida, o futuro é um aspecto inelutável de nossa experiência, e não uma ilusão, muito embora seja intangível demais para tornar-se objeto de nosso exame, da mesma maneira como, por exemplo, um objeto físico diante de nossos olhos. Há algo de muito esquivo em relação ao futuro. Todavia, conquanto não possa ser retificado, há um traço de inevitabilidade nele.

A futuridade, sem dúvida, é um dos lugares-comuns que se furtam à nossa compreensão focal ordinária. É uma dimensão em que habita nossa consciência sem que costume focalizá-la.


Reconhecer o passado realmente como passado significa que já temos alguma vaga idéia da futuridade. Mesmo quando parece ausente, o futuro já se insinuou, com calma, em nos$a consciência subjetiva presente. Em comparação com o silencioso horizonte desse futuro, nosso passado revela-se à consciência exatamente em seu caráter de passado.

Se o futuro já se inseriu em nosso presente, talvez possamos começar a experimentar um espinhoso conflito. Esse conflito envolve uma luta entre a premência de assegurar nossa existência na certeza estabelecida do passado, por um lado, e o desejo de abrir-nos ao que pode haver de inesperado em um novo futuro, por outro. A ingerência do futuro presente é um dado objetivo e inegável. Nossos calendários e nossos relógios dão prova disso. No entanto, subjetivamente falando, podemos nos relacionar com essa intrusão do futuro nos diferentes modos de consciência e de ser.


O futuro é simultaneamente o objeto de nosso anseio mais profundo e um horizonte de que gostaríamos de recuar para uma distância menos ameaçadora. Preferiríamos fixar o passado ou o presente como o critério absoluto de nossa vida a assumir o risco de embarcar na novidade e no desconhecido que o futuro representa.


O futuro pode ser tanto alvissareiro como estarrecedor. Objeto de nosso desejo, o futuro também pode repelir-nos. O futuro é inexorável, e, no entanto procuramos prevenir sua ocorrência.

Não é qualquer futuro em particular que pode satisfazer-nos. Mesmo na eventualidade de que chegássemos a uma imaginada "utopia" em nossa vida individual ou coletiva, inevitavelmente concluiríamos que também essa utopia teria de ser relativizada pelo horizonte de um futuro situado para além dela própria. Todo futuro específico é relativo, de sorte que se revela exíguo demais para aplacar a enorme sofreguidão de futuro que constitui o dinamismo da vida humana e social. O caráter sempre arredio do futuro pode fazer desesperar a atitude mais honesta que podemos assumir em relação a ele.

O nome desse futuro infinito e inesgotável é Deus. Esse futuro é o que a palavra “Deus” designa. Se esse termo não lhe diz muita coisa, traduza-o, e fale a respeito de seu futuro último, daquilo por que espera no âmago de seu desejo. Sabe-se que Deus significa o futuro absoluto, então sabe muito a respeito do divino. A realidade está apenas no passado! O presente é suficiente! Pois quem quer que se interesse pelo futuro absoluto interessa-se por Deus.


A metáfora da "profundidade" é por si só inadequada para assinalar a realidade do que as pessoas entendem por Deus. Precisa ser complementada por outras idéias, entre as quais a de futuridade. Na religião bíblica, a idéia de Deus é inseparável de nossa experiência do futuro. A Bíblia abriu nossa consciência a uma forma radicalmente nova de experienciar a profundidade da realidade, ou seja, essencialmente como futuro. Mesmo a atual experiência secular do futuro é influenciada pela situação bíblica da realidade de Deus na dimensão da futuridade. Os estudos bíblicos atuais mostram claramente que a antiga experiência religiosa judaica diferia da de seus contemporâneos essencialmente por desonerar o sagrado de sua sujeição ao ciclo das estações da natureza, situando-o no reino do futuro histórico indefinido.


Outra forma de conceber Deus, portanto, é como futuro absoluto. Deus não é um objeto de nossa experiência, mas antes uma dimensão ou horizonte de nossa experiência. Nem todas as coisas reais são objetos potenciais de experiência humana. A dimensão de futuro, tanto quanto a de profundidade, decerto é real, sem que por isso esteja sujeita a nosso domínio intelectual ou perceptivo. Por essa razão Deus talvez possa ser compreendido menos como objeto potencial de experiência e mais corno dimensão, condição e horizonte futuro da totalidade de nossa experiência.

 E, como futuro absoluto, "Deus" significa a irreprimível promessa de realização que desponta novamente do infinito - e aparentemente vazio - horizonte de nosso futuro toda vez que sofremos uma desilusão. "Deus" significa o fundamento de esperança que nos alenta a prosseguir buscando, sempre que percebemos que ainda não atingimos a meta pela qual verdadeiramente ansiamos.

A AUSÊNCIA DE DEUS

Situar a presença de Deus na arena do futuro pode ajudar-nos a entender sua aparente ausência. Os filósofos de orientação científica costumam desafiar os teístas a apresentar alguma evidência concreta da realidade de Deus. Exigem algo que se assemelhe a uma demonstração positiva e científica da existência contemporânea objetiva de Deus. Quando não conseguem aduzir essa verificação os teístas são acusados de fomentar uma ilusão, de não ser realistas. A existência daquilo que se presume ser de importância cardeal não é tão evidente quanto à de uma rocha.

A ciência se fixa no presente ou no passado, e não consegue lidar com o futuro, pois não tem como exercer nenhum controle verticacional sobre a dimensão do vir-a-ser.

A esperança é uma abertura à irrupção do radicalmente novo e imprevisível. O desejo, por sua vez, é a ilusória projeção no futuro de nossas aspirações atuais. Não representa uma abertura ao futuro, pois é inteiramente orientado para o presente. Por outro lado, em se tratando da esperança, temos de relativizar nosso desejo e abrir-nos à perspectiva de que o radicalmente novo venha surpreender-nos. A esperança não é fuga da realidade, nem tão fácil quanto reiteram seus críticos. É a atitude de quem consegue suportar conviver com a ausência de Deus.


A RELIGIÃO

Se a ambiência fundamental de nossa vida é não só a profundidade, mas também o futuro absoluto é nesses termos que nos cabe entender a "religião". Podemos dizer então que a religião não é apenas preocupação com a profundidade ou a expressão, em símbolos e ritos, de um senso compartilhado de profundidade.


O âmago da religião, pelo menos nesse contexto, pode ser concebido como esperança de um “futuro absoluto”. Essa esperança não é renúncia ao princípio de realidade, se considerar que a substância da realidade encontra-se no futuro, e não no presente e o passado. Não há evidência de que o presente e o passado esgotem os limites da realidade. E, se a plenitude do ser de Deus é essencialmente futuro, então a religião realista consiste na busca esperançosa e imaginativa desse futuro.

Dizer que a imaginação condiciona nosso pensamento acerca de Deus parece ser o reconhecimento da natureza ilusória da idéia de Deus. Psicologicamente falando, “Deus” parece não ser outra coisa exceto uma projeção.

De acordo com a teoria da projeção, a intensidade de nossa paixão por Deus é suficiente para explicar a vivacidade e a tangibilidade da impressão que temos de que “de fato” somos cingidos por uma realidade divina. “Deus” nada mais é que a projeção de nossos próprios atributos pessoais sobre uma quimera inventada por nosso desejo.

É possível que a origem de nosso senso de Deus possa ser explicada em parte como o produto de nosso desejo, e também como o resultado de nossa consciência ser dominada pela realidade do divino. Tanto o desejo imaginativo dos seres humanos como a realidade divina podem constituir, em conjunto, o senso que temos de Deus.

Bowker, no entanto, afirma o seguinte:

...seria impossível, apenas em bases psicanalíticas, excluir a possibilidade de que Deus seja uma fonte do sentimento de Deus: por mais que boa parte do sentimento de Deus possa ser elaborada a partir, e como conseqüência, de experiências da infância e por mais que grande parte da caracterização de Deus possa repetir relações parentais, não há como descartar a possibilidade de que possa haver “algo” na realidade que no passado sustentou essas repetições e reforçou a continuidade de termos como “Deus”.


Uma proveitosa analogia de nossa experiência humana pode auxiliar-nos a entender quão necessárias são nossas projeções em qualquer possível encontro com o divino, mesmo que essas projeções tenham aspecto de ilusão.

O risco de tomar a metáfora da "profundidade" de maneira muito unidimensional é que pode levar à tendência gnóstica de deslocar-se verticalmente para fora do reino de nossa historicidade. Por essa razão, muitos de nós enfatizaríamos que um entendimento da religião como a busca da profundidade inclui, como sua substância mais íntima, uma abertura radical ao futuro absoluto. Esse futuro vem a nosso encontro nas imagens de esperança que despontam de nossa existência na história concreta, mas não requer que abandonemos essa história para escapar rumo a uma eternidade intemporal. Em vez disso, convida-nos a transformar nossa existência histórica, à medida que sejamos humanamente capazes de fazê-lo, na figura de imagens esperançosas por meio das quais a profundidade do futuro desvele-se a nós.


CAPÍTULO III


A LIBERDADE

Poucas palavras evocam sentimento tão positivo como "liberdade". Ao mesmo tempo, porém, pouquíssimas palavras são mais difíceis de definir. Sentimo-nos tentados a parafrasear as conhecidas palavras de santo Agostinho quando se lamentou da própria incapacidade de compreender o significado do tempo: se não nos perguntam o que é liberdade, sabemos do que se trata; porém, tão logo nos indaguem a respeito, já não sabemos.



Três são as formas pelas quais os filósofos costumam abordar o conceito de liberdade. A primeira consiste em entendê-la como algo que temos; a segunda, como algo que somos; e a terceira, como algo que nos tem.

A primeira abordagem concebe a liberdade como uma de nossas faculdades, por meio da qual fazemos "escolhas livres" entre várias alternativas que se nos oferecem. A capacidade de fazer livres escolhas é certamente um importante aspecto da liberdade, mas a livre escolha não é coextensiva à liberdade como a entendemos aqui.

A segunda abordagem, exemplificada de maneira extrema pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre, entende a liberdade como a verdadeira essência da existência humana. Nessa visão, a realidade humana é liberdade, no sentido negativo de não ser determinada por algo além de si mesma e no sentido positivo de constituir a fonte criativa de nossa verdadeira identidade. No sentido mais profundo, liberdade é algo que nos tem, e não algo que podemos manipular. Devemos nossa liberdade de escolha, tanto quanto a liberdade de nossa existência finita, à nossa participação na liberdade abrangente.


Quando utilizamos o termo "angústia" aqui, no entanto, não estamos nos referindo a algo anormal nu patológico. Pelo contrário, estamos falando de um estado de consciência que sempre acompanha nossa existência humana, quer consciente, quer inconscientemente. Sem esse estado de consciência não seríamos existentes humanos de maneira alguma. Em outras palavras, essa angústia é um aspecto característico de nossa existência, e não algo que pode ser eliminado por vias farmacológicas ou psiquiátricas.

A angústia existencial também pode ser entendida como a consciência do fato de que nossa existência encontra-se constantemente submetida a uma ameaça fundamental e inevitável.

Alguns filósofos fazem objeção ao emprego de uma noção tão complexa quanto à de "não-ser". De maneira um tanto simplista, afirmam que, se algo é não-ser, dele não se pode falar absolutamente, e que essa referência é absurda.

Podemos utilizar também o termo "não-ser" porque precisamos de uma noção mais abrangente e mais inclusiva de "destino" ou de "morte" para designar algo que continuamente ameaça nossa existência, pois "destino" e "morte" não esgotam o significado dessa ameaça.


Portanto, o não-ser ameaça-nos onticamente sob a forma do destino e da morte, moralmente na figura da culpa e da sensação de ser condenado ou rejeitado, e espiritualmente sob a forma de vazio (ou de dúvida) e da falta de sentido.

O "não-ser" é a face com que a liberdade se nos apresenta inicialmente ao convidar-nos a seu enlace. Por mais difícil que nos seja entender, é enfrentando realisticamente esse não-ser, e não fugindo dele, que nos libertamos das coisas que nos escravizam e somos impelidos à plenitude da liberdade.


Se a liberdade humana tem algum sentido realista, não pode significar libertação da angústia existencial. A busca da liberdade estará fadada à frustração se for levada a cabo como busca de refúgio contra o não-ser.

Humanamente falando, a liberdade é a consciência de que a angústia existencial foi dominada, e não simplesmente evitada. É uma consciência de que, malgrado a difusa ameaça do não-ser, o núcleo de nossa existência em última instância está sempre a salvo.

A coragem humana enfrenta e aceita a angústia existencial, em vez de fugir à sua manifestação. E, ao enfrentá-la resolutamente, dá testemunho de ura poder transcendental capaz de sobrepujar a ameaça do não-ser e de proporcionar bases sólidas para um senso realista da liberdade. Podemos perceber a evidência de sua participação em um "poder" libertador objetivo que supera o não-ser.

O nome desse horizonte de liberdade, em última instância fundante, e provedor de coragem que transparece nos atos de coragem é Deus. Essa liberdade fundante é o que a palavra Deus designa. Se essa palavra não lhe diz muita coisa, traduza-a e fale da liberdade profunda a que aspira, para além das seguranças limitadas a que se apega tentando escapar da angústia existencial.

A AUSÊNCIA DE DEUS

Uma réplica previsível à postulação que fazemos dessa fonte de coragem última, transcendente e libertadora e à sua designação como Deus é que semelhante sugestão parece supérflua. É nossa participação nessas atualidades identificáveis que provê fundamento suficiente para nossa coragem.
É compreensível, portanto, que comecemos bem cedo em nossa vida, aos primeiros sinais de nossa fragilidade, a granjear aceitação agradando aquelas "potestades", sobretudo nossos pais, aparentemente dotadas de capacidade para proteger-nos do não-ser. Ao que tudo indica essa manobra de fato funciona por algum tempo, às vezes até durante anos; e é bem possível que jamais consigamos desvincular por completo nossa existência de sua primeira base de poder parental supostamente onipotente. E se, quando adultos, parece que finalmente superamos uma relação de dependência em relação a nossos pais, ainda temos de nos perguntar em que medida podemos ter transferido nosso desejo de aprovação parental para outras pessoas em nosso contexto adulto.

Segundo Freud, as dinâmicas subjacentes à transferência são fundamentalmente libidinais, mesmo - e talvez especialmente - quando a transferência produz nossos deuses.

Becker concebe a transferência como um compromisso entre o medo e a coragem. É a um só tempo falta e busca de coragem. Como manifestação de medo da vida e da morte, a transferência visa encerrar nossa vida em pessoas, instituições ou outros objetos que aparentemente nos tragam e impedem que nos exponhamos como indivíduos, arriscando-nos efetivamente a viver nossa vida por conta própria.
O que torna a transferência insatisfatória, e requer, portanto sua transcendência, é que os objetos provisórios de transferência não podem arcar com todo o ônus de serem fontes supremas, absolutas e onipotentes de poder e de liberdade que gostaríamos que fossem.

Como diz Becker: “... as pessoas precisam de um 'além', mas atinge primeiro o mais próximo, o que lhes proporciona a realização de que necessitam ao mesmo tempo em que as limita e escraviza... A maioria das pessoas não se arrisca: escolhe o além de objetos de transferência padrão, como pais, o chefe, ou o líder...”. Como esses objetos de transferência são sempre limitados em sua capacidade de libertar-nos, não podem satisfazer nossas aspirações de uma fonte de poder adequada ou de uma liberdade fundacional.

A ausência de Deus, portanto, torna-se inteligível a quem percebe que nenhuma entidade finita "visível" pode constituir por si só uma base de poder adequada para a coragem de que necessitamos a fim de aceitar nossa ameaçada existência. A exigência de que Deus seja "visível" deriva de uma idolatria de transferência. O divino deve ser "ausente" para transcender a finita condição de nossos objetos de transferência limitadores. Deus deve ser "ausente" para que possa constituir o fundamento de nossa liberdade.

A RELIGIÃO


A religião pode ser entendida, em termos normativos, quer como busca, quer como afirmação de um fundamento último da liberdade - liberdade não da, mas apesar da angústia. A religião é constituída por um "sentimento simbólico", de acordo com o qual as realidades finitas são aceitas como tais, e não encarregadas elas próprias da tarefa de libertar-nos da angústia existencial. A religião é a participação consciente em uma fonte última de coragem. Isso significa que a religião relaciona-se de forma especial com as coisas finitas.

Se percebemos sua realidade fundante manifestando-se por meio dessas coisas de forma especial ou decisiva, então podemos chamar de “símbolos" reveladores esses eventos, pessoas ou objetos mediadores. Essencial a um genuíno sentimento religioso é a consciência de que todos os objetos e pessoas de nosso contexto imediato participam do "poder de ser" último e, em virtude dessa participação, são "reveladores" de algum aspecto da realidade última, mas não coextensivos a essa realidade.

Deve-se enfatizar novamente que um senso propriamente simbólico permite-nos desfrutar e apreciar nosso contexto imediato. Tal senso não exige o rechaço do mundo finito, como fazem certas formas distorcidas de religiosidade.


Para a consciência religiosa, portanto, todas as coisas são intrinsecamente simbólicas. A consciência simbólica propicia-nos um senso de liberdade ao remeter todas as coisas e todas as pessoas a um horizonte supremo e infinito de ser. A religião é a busca e a antecipação desse horizonte como fundamento de nossa liberdade.

CAPÍTULO IV

A BELEZA


Vimos que o encontro com a profundidade, a futuridade e a liberdade requer que nos deixemos captar por elas. Via de regra, no entanto, nossa primeira reação consiste em nos esquivar à apreensão desses horizontes - que na realidade são três formas de pensar um horizonte único -, ao mesmo tempo em que somos irresistivelmente atraídos em sua direção. Em vez de permitir que a profundidade, a futuridade e a liberdade se apoderem imediatamente de nós, procuramos colocá-las sob nosso controle.


A experiência da beleza é tão bidimensional quanto à experiência religiosa do sagrado. Sentimos a lancinante dor que acompanha toda experiência estética, em virtude da frustração do desejo que acarreta.

A beleza que em última análise satisfaz, a beleza a que aspiramos, mas que de nós se esquiva, eis o que a palavra “Deus" significa. Se essa palavra pouco significa para o leitor, traduza-a e fale da sublime beleza que persegue continuamente no mais íntimo de seu desejo. Para tanto, é bem capaz que tenha de esquecer muito do que aprendeu acerca de Deus, talvez até esse próprio nome. Pois, se sabe que Deus quer dizer "beleza" em grau máximo, muito já conhece a respeito do divino.


O que nos faz apreciar a beleza das coisas é que compatibilizam nuança, pujança, complexidade e novidade, de um lado, e harmonia, regularidade ou ordem, de outro. Quanto mais “intensa” a síntese entre harmonia e contraste, maior a apreciação que fazemos de sua união.

Tanto a falta de harmonia como a ausência de complexidade empobreceriam a obra-prima artística. A apreciação que fazemos da obra de arte, ou de qualquer coisa bela, resulta de nosso implícito senso de que o belo estabelece um precário equilíbrio entre a ordem e a novidade que se articulam no objeto estético.


A identidade de todos nós é estabelecida pela interação que mantemos com o contexto narrativo de nossa existência. O sentido de nossa vida é determinado pela forma como cada um de nós participa da história que se desenrola constantemente.

O senso de uma beleza mais abrangente que situa nossas próprias experiências no bojo de um padrão esteticamente intenso é indispensável ao sentimento de viver em liberdade promissora. E é função do contexto narrativo de nossa vida proporcionar esse padrão.

A crença em Deus leva-nos a acreditar que a história é providencialmente modelada em forma narrativa, que abrange o desenrolar dos acontecimentos a partir da criação, atravessa o período atual de luta histórica e culmina no fim dos tempos, com o pleno advento do "reino de Deus". A Bíblia e mesmo a própria noção de "livro” como tal baseiam-se no pressuposto de que a realidade é dotada de estrutura narrativa. E o indivíduo que vive no contexto de uma cultura moldada pelo "Livro" adquire seu senso de identidade pessoal por meio da hierarquia de narrativas que, em última instância, radicam na história de Deus.

Em nosso esforço por pensar Deus, seria fácil demais para nós repudiar a iniciativa desconstrucionista simplesmente como uma outra modalidade de niilismo que se alimenta parasitariamente de idéias surradas de Nietzsche e do existencialismo francês. Pois em qualquer compreensão estética da realidade última, como a que apresento aqui, momentos "desconstrucionistas" são necessários para imprimir matiz e intensidade ao todo estético. Sem esse matiz, haverá uma insuportável monotonia, da mesma forma como sem harmonia haverá o caos completo.


No entanto, o senso narrativo que nossos críticos corretamente associaram à idéia de Deus é de todo inerradicável. Vale à pena recordar as palavras de Tillich: "Somos mais fortes quando esperamos do que quando possuímos". Isso se aplica não apenas à nossa busca de profundidade, mas também à nossa busca de uma beleza suprema.


A AUSÊNCIA DE DEUS


A intensa experiência da beleza nunca se prolonga indefinidamente. As sensações mais memoráveis de havermos sido arrebatados pela beleza amiúde são apenas instantes que rapidamente se evanescem e resistem a uma repetição adequada. Em segundo lugar, existe sempre uma esfera de nossa aspiração estética que se mantém insatisfeita, mesmo pelos encontros mais pungentes com pessoas, música, arte ou fenômenos naturais belos. Não é difícil a qualquer de nós recordarmos-se de exemplos de intangibilidade da beleza ocorridos em sua própria vida.

A incapacidade das manifestações estéticas particulares em satisfazer a infinitude de nosso desejo do sublime pode ser facilmente entendida como apenas uma outra ilustração da insuperável incompatibilidade entre o homem e o universo. E seria muito difícil oferecer refutação empírica a essa visão trágica.

E se o divino é o belo ou sublime, então, de acordo com o que observamos em cada um dos capítulos anteriores, não devemos esperar muito apreender a beleza, mas deixar-nos apreender e arrebatar por ela. Entretanto, como também já enfatizamos nossa reação inicial geralmente é de resistência e até de negação do delicado envolvimento de nossa existência pelo mysterium, nesse caso, o belo.

Em um modo de sensibilidade de todo físico ou “visceral", estamos constantemente percebendo aspectos da realidade que extrapolam os dados evidentes da percepção sensorial. Na totalidade de nosso organismo, estamos ligados às tendências dinâmicas de um universo evolutivo de forma que não são claramente apresentadas pelas impressões sensoriais.

Devemos deixar que nosso próprio desejo captasse o belo a fim de que se transforme em desejo de ser captado pela própria beleza. Nossa vida, com suas alegrias e pesares, pode contribuir para o que Whitehead chama de "contraste necessário” à narrativa cósmica universal, sobre a qual, porém, não devemos exercer qualquer controle. Pelo contrário, a narrativa universal da beleza procura incorporar-nos a seu bojo e convida-nos a fazer de nossa vida um contributo a ela. Devemos conter o impulso de fazer do divino uma propriedade passível de verificação, nos termos da limitação dos dados sensórios atualmente disponíveis. Cumpre-nos aceitar a "ausência de Deus" como condição necessária à intensidade e à significação estéticas de nossa vida.

A RELIGIÃO


Se o divino for pensado como beleza excelsa, como haveremos de entender a religião? Em sentido mais amplo, a religião pode ser concebida como busca do belo, como culto ou sujeição ao processo cósmico que dispõe a novidade segundo constrastes estéticos mais intensos, ressaltando, assim, a encarnação da beleza em nosso mundo.

É quase inevitável que haja um momento de desordem ou de desconstrução à medida que os elementos são reconstruídos dentro de um padrão mais intenso. Desse modo a introdução da novidade às vezes pode ser tão diruptiva que existe até a ameaça do caos.

A religião deve ser vista em continuidade com os episódios de aventura repletos de risco do universo, caso contrário não guarda relação com o restante da realidade. Se for um desenvolvimento evolutivo realmente apropriado e significativo, e não simplesmente um outro beco sem saída, é preciso que a religião incorpore o espírito de aventura.


Parece-me que, se podemos extrair algum elemento comum da extrema diversidade das religiões aventurosas, é a seguinte exortação: não se fixe em uma ordem que lhe seja limitada demais. Seja fiel ao amor que tem pela ordem, pois sem ela nada existe. Mas lute por uma ordem tolerante à novidade e aos conflitos. Abra-se à novidade mesmo quando acarrete uma discórdia momentânea, pois, no quadro mais amplo das coisas que se acha para além de sua compreensão atual, prevalecerá a beleza. A beleza sublime assegurará que toda disposição das coisas há de ser boa. A profundidade de sua existência, seu futuro absoluto, o fundamento de sua liberdade, tudo isso constitui a beleza em grau supremo.



CAPÍTULO V


A VERDADE

O que queremos mais do que tudo? Qual nosso mais profundo desejo? Quantos de nós podem responder com sinceridade: "A verdade - o que mais queremos é a verdade a respeito do universo, das outras pessoas e, sobretudo de nós mesmos"? Será a verdade o que de fato mais intensamente queremos? Ou não estaríamos em melhor situação se fôssemos poupados da verdade? Soren Kierkegaard escreveu: "... os homens em geral estão longe de considerar a relação com a verdade como o bem supremo, e estão igualmente longe de considerar, em termos socráticos, que viver na ilusão seja o pior dos males". Por que será que nem sempre estamos interessados na verdade, e em vez disso amiúde procuramos guarida nas ilusões?

Talvez isso se explique pelo fato de que o desejo de verdade não é a única paixão que governa nossa vida consciente e instintiva. Uma breve reflexão basta para lembrar-nos de que somos constituídos por um emaranhado de tendências, desejos, anelos, aspirações, anseios e esperanças. Curiosamente, os habitantes dessa selva de desejos muitas vezes estão em conflito entre si. Uma parte de nós pode querer gratificação sensual; outra segurança; outra, poder; outro sentido; outra aprovação.
Apesar disso, a mensagem de nossos grandes clássicos religiosos, literários e filosóficos é que, de fato, existe apenas um desejo no qual podemos fiar-nos na condução à genuína felicidade: nossa sede de verdade. Só quando subordinarmos nossas demais inclinações ao Eros pela verdade é que então encontraremos aquilo que buscamos.

Queremos ter certeza de que nossos discernimentos, hipóteses e teorias são consistentes com a realidade, pois do contrário não nos deixarão satisfeitos. Essa inquietação em face do simples "pensar" leva-nos a adotar procedimentos de "verificação" para aferir se nossos insights e compreensão encaixam-se ou não com o mundo real, se são ou não congruentes com a realidade. Nossa insatisfação com o simples pensamento, por mais engenhoso que possa ser, é que nos conduz ao “conhecimento". “Nossa impressão de que conhecer é mais significativo do que simplesmente pensar deriva do fato de nos deixarmos motivar por um desejo de conhecer”.

Como o desejo de conhecer não é a única motivação, e talvez nem seja mesmo a dominante, em nossa vida consciente, a qualquer momento, podemos com facilidade seguir algum outro impulso para construir auto-imagens que pouco têm a ver com o que realmente somos. E podemos achar essas auto-imagens fictícias tão atraentes a nosso desejo de poder, de satisfação ou de reconhecimento, que nos desviamos e acabamos não atinando com o discernimento apropriado em nós mesmos.

A réplica absurda é que a hostilidade do universo para conosco é a ocasião para que exercitemos uma honestidade e uma coragem que nos darão um senso ainda mais profundo de auto-estima do que a hipótese de um universo beneficente. Enfrentar o desafio de viver sem esperança requer heroísmo e, portanto, permite que nos sintamos melhor em relação a nós mesmos, na medida em que arrostamos corajosamente o insuperável desafio de um universo absurdo.

A crença de que o universo, em sua profundidade, é em última instância amoroso constitui uma representação da realidade que se funda no desejo de conhecer e com ele se coaduna, configurando, portanto, uma fiel postura de consciência a assumir.


O nome dessa verdade que coincide com o amor incondicional é Deus. Essa verdade é o que a palavra "Deus" significa. Se essa palavra se lhe afigura pouco significativa, que o leitor então a traduza, e fale do objeto último de seu desejo de conhecer. É provável que se veja forçado a esquecer muitas das coisas que aprendeu a respeito de Deus, talvez até mesmo essa própria palavra. Pois, se sabe que Deus significa verdade, a afirmação que faz desse horizonte último não pode, por definição, ser uma quimera, já que o desejo de verdade dissipa todas as ilusões. Se identifica "Deus" com o horizonte irrestrito de verdade e de amor a que tende seu desejo de conhecer, o leitor não carece temer que sua crença seja uma projeção racionalizada do desejo. Se o desejo de Deus encontra-se na raiz do desejo de verdade, então esse desejo será incapaz de procurar refúgio nas ilusões ou na mera racionalização. O desejo de Deus coincide com nosso desejo de verdade. Uma quinta maneira de pensar a respeito de Deus, portanto, é conceber o horizonte de verdade que continuamente ativa nosso desejo de formular questões, sem nos dar trégua enquanto a ele não nos rendemos.

Sugeri aqui que a verdade, a profundidade, a futuridade, a liberdade e a beleza máxima a cujo enlace somos constantemente convidados consistem em um amor incondicional. E talvez esse amor seja o tremendum de que fugimos, tanto quanto o fascinans que nos promete a plena consumação.


A AUSÊNCIA DE DEUS


A própria noção de desejo implica a falta ou a ausência daquilo que se deseja. Se de fato possuíssemos aquilo que desejamos, não poderíamos desejá-lo. A posse de alguma coisa elimina o anseio que dela se tem. Ao mesmo tempo, no entanto, não poderíamos desejar algo a menos que sua presença já estivesse "no horizonte", por assim dizer.

A "ausência" da verdade, sua discrição, é uma ausência necessária, caso deva funcionar como o critério de nosso conhecimento. Se devemos ser alimentados pela verdade, em vez de submetê-la ao capricho de nossa própria fantasia, então temos de permitir que a verdade seja um horizonte que nos abranja, e não uma série de objetos sobre os quais possamos nos arrogar como especialistas. A verdade, para permanecer a verdade e não uma posse, não pode ser controlada ou manipulada de sorte a tornar-se inteiramente manifesta nos estritos limites do presente.

Se apropriadamente identificarmos Deus com a verdade, esse procedimento poderá ajudar-nos a aceitar a inevitável ausência de Deus da esfera dos objetos suscetíveis de dominação.


A RELIGIÃO


A religião pode ser concebida então como a decisão consciente de mover-se no interior da verdade. É uma repulsa à profunda tentação de fazer da verdade o objeto de nossa vontade de dominar. A religião é uma constante conversão à dimensão do verdadeiro que transcende o mundo cotidiano do medo e todas as ilusões que no medo se fundam. A religiosidade desse desejo de verdade consiste em uma confiança fundamental na inteligibilidade última da realidade sem a qual não teríamos a coragem de formular indagações e de buscar a verdade.

Podemos dizer mesmo que a religião, da perspectiva da consciência e da aspiração humanas, tem suas origens essencialmente no desejo da verdade. Com isso não se pretende negar, evidentemente, que a vida religiosa concreta também seja ambiguamente carregada de imagens enraizadas em muitos de nossos outros desejos, e que há "desejos” em todas as pessoas religiosas que interferem no desejo puro da verdade. Frisaria, porém, que a religião se origina essencialmente do desejo de conhecer. O núcleo da religião é uma paixão intransigente pela verdade.








CONCLUSÃO


O MISTÉRIO


A forma mais importante de responder à questão "O que é Deus?” é, sem dúvida, afirmar que Deus é essencialmente mistério. Para muitos fiéis, o termo "mistério" é consonante com a profundidade, o futuro, a liberdade, a beleza e a verdade a que fiz alusão neste livro. E, indubitavelmente, para muitas dessas pessoas o termo "mistério" é mais religiosamente apropriado do que qualquer das cinco noções por mim utilizadas aqui.

Dessa forma, devemos retomar essa palavra "mistério" ao final de nossas tentativas evidentemente insatisfatórias de verbalizar "o quê" de Deus. Dizer que Deus em ultima análise é mistério constitui a derradeira palavra em qualquer reflexão adequada sobre o divino.

Uma introdução teórica ao mistério pode não afigurar-se necessária a muitas pessoas para as quais o termo já possui um poder simbólico suficientemente amplo para descortinar-lhes o horizonte último de sua existência. Para inúmeras outras, no entanto, a palavra "mistério", assim como "Deus" e "sagrado", também se esvaziou de poder e de sentido, ou foi de tal sorte banalizada pelo uso comum que já não evoca nessas pessoas nenhum senso aguçado da inexaurível profundidade da realidade. A essa altura, portanto, pode ser conveniente falar um pouco mais diretamente a respeito da palavra "mistério" como tal, se de fato esse termo é, definitivamente, o meio mais adequado que podemos utilizar na reflexão acerca de Deus.




MISTÉRIO E PROBLEMA

O termo "mistério" costuma ser confundido simplesmente como uma brecha em nosso conhecimento, um hiato temporário que possivelmente há de ser fechado à medida que a consciência científica avançar mais. Segundo essa estreita visão, com o progresso de nosso domínio intelectual do mundo, encontraremos soluções para os “mistérios" que em princípio continuam suscetíveis de resposta, embora até agora se tenham revelado efetivamente enigmáticos.

O mistério, em contrapartida, denota uma esfera da realidade que, em vez de reduzir-se à medida que nos tornamos mais sábios e poderosos, pode ser efetivamente experienciada como algo que se avantaja e torna-se mais incompreensível à medida que solucionamos muitos de nossos problemas científicos e os outros. O mistério é a região do "conhecido desconhecido", o horizonte que se aproxima e se afasta à medida que nosso conhecimento avança. É a arena do incompreensível e do inefável que nos conscientiza do nosso desconhecimento, do quanto ainda nos resta por conhecer.

O lugar do mistério, e, portanto, o lugar apropriado para a introdução de um discurso especificamente religioso, são os limites de nossa indagação orientada para os problemas, quando nossa inquirição desloca-se inteiramente para outro registro. Nesse ponto é que formulamos questões que nenhuma engenhosidade humana jamais resolverá ou "removerá". O horizonte do mistério interpéla-nos do outro lado de nossas questões-limite e arremessa-nos para além do meramente problemático. E damos mostras de nossa propensão ao mistério quando nos encontramos formulando questões-limite. Em contrapartida, o fato de não admitirmos sequer a preocupação com essas questões irrespondíveis talvez seja o resultado de uma repressão do mistério que uma cultura erigida predominantemente sobre o ideal de poder inevitavelmente promove.

É nossa abertura fundamental ao mistério que nos distingue do animal e funda a natureza autotranscendente de nossa vida. É nossa abertura ao mistério que constitui o fundamento de nossa liberdade e liberta-nos da escravidão da mera normalidade. É em virtude de nossa capacidade de mistério que experimentamos o mal-estar e a angústia que nos levam a abandonar o status quo e a buscar a beleza mais intensa e a maior profundeza da verdade. Em síntese, o mistério é, sobretudo o que possibilita uma vida verdadeiramente humana.

Apesar disso, nossa abertura inata ao mistério amiúde é bloqueada pela obsessão que temos com o poder ou com a segurança. Por essa razão precisamos de técnicas, de vias de esclarecimento, de imagens e idéias poderosas que nos ajudem a remover os obstáculos que se interpõem entre nossa consciência e o mistério que a envolve.


DESIGNANDO O MISTÉRIO


A questão, no entanto, permanece de pé: por que devemos designar esse mistério pelo nome de "Deus". Penso que, no caso de alguns de nós, por causa das imagens psicologicamente mórbidas que a palavra "Deus” evoca, talvez seja melhor simplesmente não empregar esse termo. Há certas pessoas para as quais a palavra "Deus" pode representar efetivamente um estorvo para um salutar senso do mistério.

A palavra "Deus" é insubstituível na religião teísta, e não pode ser inteiramente excluída do léxico ocidental como termo que designa a dimensão mistérica de nossa existência. Além disso, a palavra "Deus", se compreendida segundo a forma simbólica e narrativa pela qual originalmente se Inseriu na consciência religiosa, específica e agrega um elemento semântico à noção de mistério que este último termo em si mesmo pode não sugerir de imediato.

Podemos dizer que existem apenas duas grandes "verdades" que um sentimento religioso autêntico requer. Todas as demais "doutrinas” religiosas derivam dessas duas verdades, e, se tivermos em mente esse fato, a religião não precisará ser uma questão tão embaraçosa ou complicada como por vezes aparenta ser. A primeira dessas verdades, como tentei mostrar, é simplesmente que nossa vida é envolvida pelo mistério. E a segunda grande verdade é que o mistério é graça. Uma das mais explícitas formulações da gratuidade do mistério é aquela segunda a qual o mistério se doa sem reservas, com um amor que se despoja de si mesmo, ao mundo que esse próprio mistério abarca. É sobretudo por causa dessa gratuidade que podemos chamar o mistério pelo nome de "Deus".

Com base nessas duas proposições, de que somos cingidos pelo mistério e de que esse mistério, referido como Deus, se doa inteiramente a nós, é possível extrair todas as demais idéias religiosas importantes.

É possível que a propensão a conceber Deus em termos pessoais ainda seja mais uma manifestação de nossa imaturidade do que uma avaliação realista do mistério inexaurível da realidade?

Sem negar que as imagens que fazemos de um Deus pessoal sempre comportam um aspecto projetivo ou que essas imagens não representam exaustivamente o mistério de nossa vida, podemos ainda considerar a "personalidade divina" como um símbolo indispensável da proximidade do mistério em relação a nós.

A liberdade e a inviolabilidade das outras pessoas dão-nos uma idéia da inacessibilidade do mistério que é sua profundidade. Remover a face pessoal do mistério é perder o acesso a ele. Por meio da personalidade, a profundeza da realidade "revela-se" de forma tão absoluta que devemos falar de Deus em termos pessoais. Deus é a profundidade e o fundamento de toda personalidade.

A PROXIMIDADE DO MISTÉRIO

Podemos pensar "o quê" da divindade nos termos da metáfora do “horizonte". Foi evidentemente unidimensional por haver enfatizado o horizonte transpessoal de nossa vida e de nossa consciência e por não ter conseguido ressaltar de que maneira Deus também pode ser concebido como sujeito pessoal que nos aborda e procura estabelecer um diálogo pessoal conosco.

O tema da "proximidade" do divino também deveria ser enfatizado a fim de contrabalançar o da "ausência" de Deus. Com efeito, não há contradição entre a ausência e a proximidade de Deus, e sua ausência pode até ser entendida como essencial para a proximidade. A auto-ausência de Deus é essencial para conferir autonomia ao mundo e liberdade aos seres humanos. Nesse sentido, a ausência e a invisibilidade do mistério podem ser entendidas como o reverso de sua intimidade conosco.


BIBLIOGRAFIA

Haught, John F.O que é Deus?: Como pensar o divino / John F. Haught; [tradução Marisa do Nascimento Paro e Jonas Pereira dos Santos]. – São Paulo: Paulinas, 2004. – (Coleção espaço filosófico)

Nenhum comentário:

Postar um comentário